As Ricas Horas do Duque de Berry

As Ricas Horas do Duque de Berry
As Ricas Horas do Duque de Berry. Produção dos irmãos Limbourg - séc. XV. Mês de julho

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Areia e sangue: das arenas para o cinema

O cinema é uma forma de arte, alias, é conhecido como a “Sétima Arte”. A arte das imagens em movimento, que, acompanhadas de um trabalho dedicado com som, fotografia, figurino, roteiro e obviamente, a ação dos atores guiados pelo olhar do diretor, a transformam numa forma de expressão própria que dialoga bem com outras estéticas, mas não as substitui.
Existem excelentes adaptações de obras literárias para o cinema, mas que mesmo assim, não substituem o contato do espectador com o texto original ou às vezes, algumas produções cinematográficas que seguem caminhos distintos do texto original, mas aqui, o limite entre a licença poética do roteirista e do diretor com a obra do escritor se estabelece dentro de um universo pantanoso, repleto de brumas, uma vez que não há uma regra, um parâmetro que ofereça sucesso garantido e em alguns casos, sacrifica-se o livro para produzir um filme de "grande sucesso de bilheteria" e nesses casos, a História e a Literatura já foram muitas vezes massacradas.
Dentre os vários períodos históricos, a Antiguidade tem sido bastante explorada, gerando excelentes produções ou então algumas de gosto e qualidade que educadamente podemos chamar de “duvidosos”.
Da literatura o cinema tomou a expressão “épico” que provém da epopéia, que segundo Emil Staiger, em seu trabalho Conceitos Fundamentais da Poética, coloca o leitor como alguém que acompanha o percurso do heroi, com suas aventuras, lutas e tensões e assim, no cinema, o heroi é o protagonista do filme, aquele pelo qual o público acompanhará passo a passo, numa torcida desenfreada pelo seu sucesso, que nem sempre ocorre, dependendo do personagem abordado ou do filem que é produzido, pois alguns diretores preferem retratar um anti-herói ou então, um personagem secundário pode roubar a cena do protagonista e assim, o mais importante é assistir o filme.
Dentre meus preferidos, posso mencionar dois que se colocam em contextos de produção bem distintos: o Spartacus de Stanley Kubrick de 1960 e o Gladiador de Ridley Scott de 2000. Há entre eles um abismo de 40 anos, além de questões históricas distintas, tanto no que diz respeito à época em que foram produzidos, quanto ao período que evocam, mas ambos se unem no empunhar de um gládio por um herói que, nas arenas ou fora, delas buscava defender seus ideais.

Spartacus existiu, viveu no fim da República romana e se trata de um dos maiores inimigos que Roma tinha até então enfrentado dentro de seu território, pois sua revolta, acompanhada pela libertação de outros escravos numa proporção sem precedentes (falamos em 20.000 escravos) que chegou a ameaçar de modo consistente o poder romano e teve que ser sufocado, alias, com muita dificuldade em 71 a.C. pelas tropas do general Crasso, responsável pela sua crucificação (morte cruel e lenta destinada aos ladrões e subversivos) e de seus 4.000 companheiros ao longo da Via Ápia (estrada que ligava Roma ao sul da península, passando pela Campânia, foco inicial da revolta junto à cidade de Cápua).
A imagem dos oprimidos se erguendo contra os opressores, sintetizada não só na atuação de Kirk Douglas atuando no papel de Spartacus numa tentativa de resgatar a sua altivez e romper a ordem imposta aos escravos ou ainda a fala final do líder escravo, ao se referir ao companheiro Antonius, o qual acabara de matar: “ele voltará e na forma de milhões”, uma defesa clara da liberdade que ecoava na década de 1960 dentro da Guerra Fria que estava em franca atividade.

Já o general Maximus Décimus Meridius é um personagem fictício, interpretado por Russell Crowe, como o mais destacado militar do reinado de Marco Aurélio (ficou conhecido como o “imperador filósofo” em virtude do gosto que tinha pelos estudos e pela esmerada formação, sendo autor de um conjunto de pensamentos escritos em grego e influenciado pelo estoicismo) que governou entre 161 e 180 d.C., representando o auge do Império Romano e assim, dominava da atual Grã-Bretanha até o norte da África, da península Ibérica à Mesopotâmia, significando controlar cerca de um quarto da humanidade.
Num caminho distinto de Kubrick, Ridley Scott construiu uma narrativa fictícia com personagens reais ou não, conduzindo o espectador por um ciclo de ações que unem a primeira cena do heroi com seu último momento. Marco Aurélio nunca pensou em transformar Roma novamente numa República e muito menos foi assassinado por seu filho Cômodo, tal qual aparece no filme. Marco Aurélio morreu de tifo, legando o Império a Cômodo, o qual condizia com a interpretação de Joaquin Phoenix no filme, mostrando um imperador cruel, completamente instável e sem escrúpulos ou mesmo virtudes, que costumava descer às arenas para cumprimentar os gladiadores, cujo final foi a morte decorrente de uma conspiração, levando Roma para o início de uma longa crise militar que colaborou para a destruição do Império.
Scott conseguiu com os requintes técnicos recuperar a força do espetáculo, usando os efeitos especiais para reconstruir o esplendor das arenas, especialmente o Coliseu, que na fala do senador Gracus: “Roma é a plebe! O coração pulsante de Roma não é o mármore do Senado, mas sim a areia do Coliseu”. A primeira frase aparece em Spartacus, mas ganha uma dimensão própria na descrição da política do Panis et circensis, ou seja, o Pão e Circo oferecidos à plebe, que controlada e manipulada, que assim abria caminho para que a política fosse conduzida pela elite patrícia, mas é importante lembrar que tal circunstância já era bem comum à época de Spartacus.
O gosto pelos espetáculos sangrentos era algo muito forte na cultura romana, sendo as arenas um ponto de convergência entre os diferentes segmentos da sociedade romana, independentemente da sua condição econômica, pois para as famílias abastadas, patrocinar jogos era algo de grande prestígio entre os poderosos, da mesma forma que assisti-los, era um momento sublime, um exercício de poder que pairava sobre o sentimento de “ser romano” e poder decidir se o agonizante derrotado seria morto pelo “golpe de misericórdia” ou não, situação condensada no gesto do polegar apontando para baixo ou para cima, respectivamente.
O gosto pelo sangue derramado dos inimigos e escravos nas areias, acompanhado dos gritos em êxtase da multidão aproximam a Antiguidade dos tempos atuais, guardadas as devidas proporções, pois os espetáculos de massa ainda tem um grande apelo entre a população ocidental ou entre aqueles que convivem com o “modo ocidental” de viver numa visão mais “globalizada” : a sociedade de consumo, de massa e de espetáculo. Mas diferentemente do mundo antigo, hoje já não há morte ou sangue abundante e os espetáculos e o pão são pagos, diga-se de passagem, bem caro e ainda assim, conseguem seduzir milhões que projetam nesses “novos herois ou pseudo-herois” da atualidade seus desejos e vontades, tudo delimitado de maneira muito clara pelos índices de audiência, os quais geram pesados patrocínios e infinitos dividendos aos investidores.
Encerro este tópico com uma reflexão sobre a fala do general Maximus, elevando o moral de suas tropas antes de enfrentar os resistentes germânicos: “Aquilo que fazemos em vida ecoa na Eternidade”. Este ideal que os antigos buscavam não pode ser visto como mero desejo de fama, mas sim um sentimento de poder que faria daquele que fosse consagrado pela glória um “imortal”, mas em nosso tempo cabe a pergunta: a glória é alcançada por mérito, como uma conseqüência e reconhecimento ou glória por si só? Numa posição mais afinada com nossa época, o artista plástico Andy Warhol (1931-1987) profetizou a busca pelos holofotes se resumiria a “15 minutos de fama”, portanto, cada época e cultura vêem a notoriedade de um modo diferente, dentro de seus conceitos e valores, mas infelizmente, em nossos tempos, os valores que falam mais alto são os financeiros...
Ave Spartacus! Ave Warhol!

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