As Ricas Horas do Duque de Berry

As Ricas Horas do Duque de Berry
As Ricas Horas do Duque de Berry. Produção dos irmãos Limbourg - séc. XV. Mês de julho

terça-feira, 19 de julho de 2011

Peste Negra: um flagelo varre a Europa

“Quantos homens valentes, quantas damas graciosas, tomavam o desjejum com a família e naquela noite jantavam com os seus ancestrais no outro mundo”. Essas palavras, escritas pelo poeta italiano Giovanni Boccaccio no seu livro Decameron, em 1348, expressavam a gravidade e o pânico que assolou a cidade de Florença, assim como a maior parte da Europa, durante a epidemia da chamada Peste Negra.

         Foi mais um dos flagelos dentre os que marcaram o século XIV – fome, guerra, morte–, resultantes de uma grave crise que se abateu sobre a Europa. Um momento tenso e tumultuado que sucedia um período de intensa expansão entre os séculos XI e XIII. Quais os motivos dessa retração? Na visão daqueles que vivenciaram o período, tudo seria um severo castigo Divino, punindo o desregramento moral dos homens que se encontravam envolvidos com os prazeres mundanos e as questões materiais. No entanto, outros elementos podem nos oferecer algumas explicações mais claras sobre essa crise, cuja superação se esboçou na expansão marítima e na conquista de novas terras: a conquista do Novo Mundo e uma nova fase de intensa prosperidade.

         Durante o processo de expansão, entre os séculos XI e XIII, a Europa passou por grandes mudanças: redução das invasões “bárbaras”, aumento populacional, ocupação de novas áreas para as cidades e plantações. O comércio e a riqueza grassavam nas cidades, os mercadores e suas companhias de comércio prosperavam. A Igreja buscava nesse momento de abundância angariar recursos para enaltecer a fé católica, cujo símbolo maior foi a catedral, igreja sede do bispado que deveria ser grande o bastante para acolher todos seus fiéis, visível à longa distância como um símbolo da cidade, bela e suntuosa para talvez apresentar aos fiéis uma idéia da Jerusalém Celeste.

         Todo este esplendor foi abatido logo no começo dos anos de 1300 por uma gradativa redução das colheitas, um resultado misto de mudanças climáticas (secas, nevascas, chuvas excessivas) e pelo esgotamento do solo. Com a falta de alimentos e os preços elevados, a fome se tornou constante e crescente, seguida pela desnutrição e o aumento da mortalidade. A população que inchava as cidades começava a definhar, criando problemas como crise financeira (aumento dos gastos) e econômica (queda na produção). Além da fome, a guerra se tornaria um complemento ao caos já existente.

A guerra como pano de fundo
      
A Guerra medieval. séc. XIV. Bibliothèque Nationale Française, Paris 

   A Peste Negra chegou acompanhada de três outros flagelos: a fome, a guerra e a morte. Em 1337, explodiu a Guerra dos Cem Anos, entre  Inglaterra e França, que só terminaria em 1453. O território francês foi o palco exclusivo deste sangrento conflito movido pela disputa do controle da região de Flandres, rica pelo comércio de tecido, e da sucessão da Coroa francesa. A dinastia reinante, dos Capetos, havia chegado ao fim com a morte de Carlos IV, e assim abriu-se espaço para a reivindicação dos Plantageneta, por parte do rei Eduardo III (primo do rei francês falecido), e da nobreza francesa, através do apoio a Felipe de Valois, primo do rei falecido e descendente da linhagem masculina, conforme o antigo costume franco (a lei sálica).


Valas comuns
         Foi neste cenário já tão complexo que, em 1348. o quarto flagelo aportou na Europa ocidental. A peste chegara ao Ocidente através de navios genoveses oriundos do Mar Negro, que trouxeram em seus porões ratos contaminados pela doença que já havia varrido populações de inúmeras regiões do extremo oriente, como China, Índia e Ásia Central.
         A “morte negra” como também era conhecida, não se tratava de uma doença de manifestação única. Tinha duas formas: a peste bubônica e a pneumônica. A primeira era transmitida através da picada da pulga do rato que se encontrava contaminada com a bactéria Yersina pestis (bacilo identificado em 1894 pelo médico Alexandre Yersin). Quando picado pela pulga, o homem desenvolvia um quadro de infecção generalizada muito rapidamente, que poderia levá-lo a morte por septicemia. A principal evidência da contaminação era a inflamação dos gânglios linfáticos, chamados de bubões. Eles chegavam a atingir o tamanho de um ovo de galinha. Havia ainda dores, febres constantes e hemorragias subcutâneas que formavam manchas escuras sob a pele. Daí o nome Peste Negra.

         Já a segunda variante, a peste pneumônica, era provavelmente mais contagiosa, pois era transmitida a partir do contato com os doentes, ou seja, de homem para homem. Provocava febres, suor constante, dores, tosse com a liberação de catarro e sangue. O doente poderia viver entre 24 e 72 horas e depois de tanto sofrimento, morria, deixando um cadáver esquelético e mal-cheiroso cujo destino era uma vala comum no prazo mais rápido possível.

Ratos e pulgas
         O desconhecimento efetivo das formas de transmissão e de cura serviu para tornar a epidemia ainda mais mortal, pois as cidades medievais não possuíam sistemas de água e esgotos. Os dejetos eram espalhados em valas e latrinas a céu aberto. Muitas casas comportavam mais de 10 pessoas e algumas chegavam até ao dobro, sem que houvesse condições mínimas de higiene. Era o ambiente ideal para a proliferação de ratos, pulgas e a transmissão direta da doença.

         A medicina, naquele contexto, especulava entre inúmeras hipóteses. Muitas ainda se prendiam às causas sobrenaturais como uma conjunção de planetas que teria  afetado os homens, trazendo-lhes o flagelo da peste. Detalhe: os conhecimentos de astrologia faziam parte do saber médico(veja a iluminura abaixo, datada do século XIV e arquivada no acervo da Bibliothèque Nationale Française, Paris ). Havia também a tese do castigo divino, em virtude dos pecados cometidos pelos homens. Alguns médicos como Gentile de Foligno, doutor em medicina pelas universidades de Pádua e Bologna, supunham outras causas. Gentile  acreditava na transmissão pelo ar, o que não estava errado, apesar de não conhecerem a existência dos microorganismos.





         O avanço do saber médico esbarrava nas interdições religiosas como a proibição da dissecação de cadáveres, tanto no cristianismo quanto no islamismo. Dessa forma, o conhecimento sobre anatomia e fisiologia estava embasado nos estudos de Cláudio Galeno, médico romano do século I da era cristã. Os remédios conhecidos eram muitas vezes ineficazes para a doença e nocivos ao organismo, matando ao invés de curar. Fórmulas com vísceras de animais, ervas, raspas de ossos, metais em pó como ouro e mercúrio entre outras substâncias compunham o receituário. O número de mortos e a gravidade da epidemia acabaram mudando essa situação. Em virtude das circunstâncias, as autoridades de Florença, Avignon e Montpellier autorizaram dissecações de cadáveres.
        
Fim do mundo

Fonte: Atlas de História Geral. Hilário Franco Jr. e Ruy Andrade, Ed. Scipione.

         A peste teria chegado à Europa ocidental por volta de outubro de 1347, no sul do Mediterrâneo, espalhando-se rapidamente pela península Itálica e Ibérica em 1348. Já no fim desse ano, alcançou o norte do continente, chegando à Inglaterra, a Flandres e à Escandinávia. Entre 1349 e 1351, varreu o norte e leste europeu, atingindo o Sacro Império Germânico, a Prússia, o Reino da Polônia, a Lituânia e a Rússia.


         O número de mortos é difícil precisar. Na época, era muito usada a expressão “um terço da humanidade pereceu”. A estimativa dos historiadores aponta para algo em torno de 20 milhões de mortos, sendo que em algumas regiões chegou-se à taxa de 400 a 800 mortos por dia, enquanto em outras o número era bem menor. Em alguns lugares, a propagação da doença e sua mortandade foram insignificantes, como na planície lituano-polonesa, nos Pirineus e no Piemonte itálico, assim como algumas áreas no interior do Sacro Império e Flandres.

         Na busca pela sobrevivência, o isolamento era uma tentativa. Doentes não entravam nas cidades, que tinham a circulação vigiada. Os conventos e abadias procuravam restringir ao máximo o contato com o mundo exterior, pois um monge contaminado poderia exterminar todo o mosteiro. Foi numa circunstância dessas que Boccaccio colocou as sete mulheres e três homens de ricas famílias florentinas em sua obra Decameron. Eles se refugiam em uma casa de campo na Toscana.

 Ofício dos Mortos, British Library, séc. XIV, Londres.

         O medo da cólera de Deus também provocou reações nos fiéis, receosos da aproximação do fim dos tempos. Eles buscavam redimir-se através de procissões, orações e súplicas pela cura da peste. Outros, buscavam no martírio de seus próprios corpos a salvação destes e de suas almas, flagelando-se em longas e tormentosas procissões. Elas acabaram sendo debeladas pela Igreja por colaborarem para a disseminação da doença e criarem uma tensão perigosa naquele momento crítico: apesar da peste, ainda se tentava manter a ordem política controlada pelos senhores feudais e a ordem religiosa sob o comando da Igreja. Além dos flagelantes, a Igreja teve que conter os massacres e perseguições contra os judeus, acusados de espalhar a peste.

O bode expiatório
                                 Judeus ultrajam Cristo. Kremsmünster, séc. XIV
        

Foi durante o período medieval que se constituiu a idéia da “culpa” dos judeus pela morte de Cristo e assim eles se tornaram elementos excluídos da sociedade medieval em vários momentos, sendo proibidos de exercer determinados ofícios, obrigados a morar em bairros específicos (guetos) e quando ocorria alguma catástrofe eram os primeiros suspeitos. Não foi diferente durante a epidemia de Peste entre 1348-50. Acusados de “envenenar as águas dos poços” alguns milhares de judeus foram mortos ou expulsos de suas casas. O papa Clemente VI foi obrigado a expedir uma Bula condenando tais atitudes, mas não foi suficiente. As perseguições se tornariam mais frequentes, assim como as expulsões. Mas nada comparado ao regime nazista no século XX.

Aquela que a todos iguala

“O triunfo da Morte”, afresco de Buonamico Buffalmacco, 1350, Cemitério de Pisa, Itália.
        


 A proximidade com a morte foi uma influência na mentalidade da época, tornando-se um tema muito presente nas artes. Um exemplo é o tema da dança macabra, no qual a Morte levava os espíritos para uma grande festa em direção ao “outro mundo”. A imagem da morte como aquela que todos aguarda vai se constituindo como o emblema de um momento de tão grande tensão. Uma imagem muito expressiva é o Triunfo da Morte, afresco pintado no cemitério de Pisa pelo pintor Buonamico Buffalmacco por volta de 1350. 

Detalhe do afresco: "Triunfo da morte"

No detalhe da pintura acima, vemos três cavaleiros jovens e ricos cavalgam pelo campo e se deparam com três corpos em diferentes estágios de putrefação. A imagem sintetiza o horror e a tensão do encontro através dos gestos e dos semblantes dos cavaleiros. Ao alto, um eremita desenrola um pergaminho que contém os dizeres: “Nós fomos o que vocês são e vocês serão o que nós somos”.



         Da mesma forma que apareceu, a peste desapareceu, provocando uma significativa redução na população e uma crise nos mais diferentes setores da sociedade européia. Mas, ao mesmo tempo foi, de certa forma, o evento propulsor de uma nova onda de prosperidade que daria origem às grandes navegações e, conseqüentemente, ao mercantilismo e seus comerciantes. A chamada Idade Moderna nasceria dos estertores de um mundo em crise. A peste ainda retornaria muitas vezes, matando milhares, mas nunca como no século XIV. 

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