As Ricas Horas do Duque de Berry

As Ricas Horas do Duque de Berry
As Ricas Horas do Duque de Berry. Produção dos irmãos Limbourg - séc. XV. Mês de julho

terça-feira, 9 de julho de 2013

Privacidade, Soberania e muita espionagem: o caso Snowden e o fim da liberdade

Se acreditávamos que o governo George W . Bush (2001-2009) foi severamente invasivo quanto à privacidade de seus cidadãos e possíveis suspeitos, com as revelações feitas pelo ex-agente da CIA Edward Snowden, descobrimos que o problema é muito maior, interferindo na privacidade de milhões de usuários dos EUA e fora deles, que tiveram dados (chats, e-mails, conversas em mensagens, conversas via net, jogos virtuais e tudo mais que for possível ) violados em prol da abençoada "segurança" e do combate ao terror.

Já é bizarro, ao se tratar de cidadãos comuns, mas pelo visto, a balbúrdia extrapolou as fronteiras da sociedade civil, atingindo governos e suas estruturas, como por exemplo, a União Europeia, a América Latina e outros.

Alias, a "retenção" forçada do presidente boliviano Evo Morales em Viena, devido ao fechamento do espaço aéreo europeu para a passagem do seu avião foi algo de profunda gravidade, pois já haviam pré-julgado que Morales estava trazendo Snowden em seu avião oficial, mas depois de verificarem seu erro mais que grosseiro, os países agressores (Portugal, Espanha, França e Itália) apenas mencionaram a ocorrência de um equívoco.

A postura de Obama, sempre revestida de um considerado nível de "bom mocismo", foi para a lama, já que a ideia do governo dos EUA (independentemente de quem estiver a sua frente) é adotar uma profunda e virulenta campanha de coleta de dados, tendo a conivência ou então "participação obrigatória" dos gigantes que controlam os caminhos da web. Isto inclui o mantenedor deste blog (Google), bem como todos os seus congêneres e concorrentes.

Nestas horas soturnas, só me ocorrem duas ideías: a primeira é naquela visão, quase surreal, de uma internet plenamente livre, sem regras e controles, dotando seus usuários de plena liberdade. Tal qual o fim dos Beatles em 1970, "o sonho acabou". A outra colocação, ou melhor dizendo, citação é a de George Orwell em seu primoroso texto "1984", que continua sendo atualíssimo para descrever o que temos vivido e sentido nestes tempos de virtualidade. O livro foi publicado em 1949, mas nos remete a uma situação muito próxima, por mais que naquele contexto, Orwell estivesse fazendo mais uma severa crítica aos horrores do regime stalinista, o paralelo com a atualidade é preciso por demais.

Segue abaixo, o trecho inicial do livro. Qualquer semelhança com o que vemos hoje, tenho certeza, é a mais pura realidade. E pelo visto, tempos difíceis nos esperam...

Boa leitura!

1984 - George Orwell (1903-1950)

CAPÍTULO I
         Era um dia frio e ensolarado de abril, E os relógios batiam treze horas.
Winston Smith, o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento
impiedoso, esgueirou-se rápido pelas portas de vidro da Mansão Vitória; não porém
com rapidez suficiente para evitar que o acompanhasse uma onda de pó áspero.

         O saguão cheirava a repolho cozido e a capacho de trapos. Na parede do
fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna.
Representava apenas uma cara enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de
um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços
rústicos mas atraentes. Winston encaminhou-se para a escada. Inútil experimentar o
elevador. 

Raramente funcionava, mesmo no tempo das vacas gordas, e agora a
eletricidade era desligada durante o dia. Fazia parte da campanha de economia,
preparatória da Semana do ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston,
que tinha trinta e nove anos e uma variz ulcerada acima do tornozelo direito, subiu
devagar, descansando várias vezes no caminho. Em cada patamar, diante da porta
do elevador, o cartaz da cara enorme o fitava da parede. Era uma dessas figuras
cujos olhos seguem a gente por toda parte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia
a legenda.

        Dentro do apartamento uma voz sonora lia uma lista de cifras relacionadas
com a produção de ferro gusa. A voz saía de uma placa metálica retangular
semelhante a um espelho fosco, embutido na parede direita. Winston torceu um
comutador e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras ainda fossem audíveis.
O aparelho (chamava-se teletela) podia ter o volume reduzido, mas era impossível
desligá-lo de vez. Winston foi até a janela: uma figura miúda, frágil, a magreza do
corpo apenas realçada pelo macacão azul que era o uniforme do Partido. O cabelo
era muito louro, a face naturalmente sanguínea, e a pele arranhada pelo sabão
ordinário, as giletes sem corte e o inverno que mal terminara.

        Lá fora, mesmo através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Na rua,
pequenos rodamoinhos de vento levantavam em pequenas aspirais poeira e papéis
rasgados, e embora o sol brilhasse e o céu fosse dum azul berrante, parecia não
haver cor em coisa alguma, salvo nos cartazes pregados em toda parte. O bigodudo
olhava de cada canto. Havia um cartaz na casa defronte, O GRANDE IRMÃO ZELA
POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuravam os de Winston. Ao nível da
rua outro cartaz, rasgado num canto, trapejava ao vento, ora cobrindo ora
descobrindo a palavra INGSOC.

        Na distância um helicóptero desceu beirando os telhados, pairou uns
momentos como uma varejeira e depois se afastou num vôo em curva. 
Era a Patrulha da Polícia, espiando pelas janelas do povo. Mas as patrulhas não tinham
importância. Só importava a Polícia do Pensamento.
       Por trás de Winston a voz da teletela ainda tagarelava a respeito do ferro
gusa e da superação do Nono Plano Trienal. 



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