As Ricas Horas do Duque de Berry

As Ricas Horas do Duque de Berry
As Ricas Horas do Duque de Berry. Produção dos irmãos Limbourg - séc. XV. Mês de julho

terça-feira, 24 de junho de 2014

Parte III - Renascimento: a transição do mundo medieval para o mundo moderno

No Quattrocento podemos observar um maior desenvolvimento das formas de representação, cujo intento era a tridimensionalidade, marcando portanto um aprofundamento daquilo que foi enunciado pelo Trecento nas artes plásticas. Na literatura, podemos observar o interesse pelo humanismo, pois os escritores voltaram a imitar os autores da Antiguidade, ao substituir os dialetos locais e a utilizar o grego e o latim.


O centro da produção renascentista naquele contexto era Florença, a capital dos domínios dos Médici (foto do brasão abaixo), uma poderosa família de comerciantes e banqueiros que governaram com plenos poderes entre 1434 e 1492. Na pintura os destaques foram Masaccio (1401-1428), um jovem pintor que, apesar de sua curta carreira, deixou obras de grande importância como A Trindade, A Virgem e o Menino com os anjos, as quais inspiraram vários de seus contemporâneos; Sandro Botticelli (1447-1510), autor de O nascimento de Vênus, A alegoria da Primavera, entre outras; e Fra Angélico (1400-1455), autor da Anunciação.



Na arquitetura encontramos o trabalho de Filippo Brunelleschi (1377-1446), responsável pela construção da cúpula da catedral de Florença, entre outros trabalhos, os quais são dotados de um grande rigor no estudo das formas geométricas e da linguagem matemática, e que fazem com que Brunelleschi seja considerado por alguns especialistas como o precursor da perspectiva matemática.

Entre os nomes do Quattrocento está Leonardo da Vinci (1452-1519), homem de múltiplas habilidades: pintor, construtor, escultor, inventor, matemático e filósofo, personificando o exemplo de "homem universal". De sua vasta obra destacam-se: A virgem dos rochedos, La Gioconda (Mona Lisa), projetos arquitetônicos, tratados de anatomia, pintura e vários inventos. Leonardo representa a transição do Quattrocento para o Cinquecento.


Tomemos um primeiro exemplo, o quadro O nascimento da Vênus, obra do pintor florentino Sandro Botticelli (1445-1510), cujo próprio nome já identifica sua temática: a representação do nascimento da deusa romana do amor, Vênus (Afrodite para os gregos), encomendada por Lorenzo di Pierfrancesco, primo de Lorenzo de Médici, o Magnífico, governante de Florença entre 1469 e 1492.

Na pintura, a Vênus ocupa a posição central do quadro, dividindo de forma harmoniosa o espaço da composição: na sua direita se encontram a personificação dos ventos, que sopram e assim formam as ondas e as espumas do mar, de onde nasce a Vênus, que está em pé sobre uma concha e encobrindo-se com suas mãos e cabelos; a sua esquerda, vindo ao seu encontro, a personificação da Flora que lhe traz suas vestes.

Apesar de o tema ser uma narrativa mitológica greco-romana, o cristianismo se faz presente através do pensamento neoplatônico de Botticelli, influenciado pelo filósofo Marsílio Ficino (1433-1499), que incorporou o pensamento de Platão a partir de uma visão cristã.
Botticelli representou a concha como uma alusão ao batismo, primeiro sacramento recebido, significado da inclusão na comunidade cristã e um contraponto ao paganismo e ao Pecado Original, pois só nas águas do batismo se encontra a Salvação. O pudor da Vênus é também outra referência greco-romana, o texto O banquete de Platão, no qual aparecem duas imagens da Vênus: a Venus Vulgaris (Vênus Vulgar) nua, simbolizando a relação com o mundo material, e a Venus Coelestis (Vênus Celestial), a qual representa a essência espiritual.

Além das referências platônicas, podemos também pensar nas diferentes esculturas que representavam a Vênus, dentre elas, a chamada Vênus Capitolina, cópia romana de um original grego que se perdera.
Outro ponto importante é a ideia da mimesis, pois a natureza é o modelo e assim, se observamos a posição dos ventos e a direção em que eles sopram, notamos claramente o acompanhamento dos cabelos da Vênus, bem como o movimento dos tecidos segurados por Flora, que tem suas vestes empurradas próximo ao seu corpo. Esses movimentos ficam acentuados pela predominância das linhas curvas sobre as linhas retas que delimitam o horizonte. A simplicidade é vitoriosa e o espírito se eleva com beleza e equilíbrio.


Uma possível exemplificação dessa ideia está no estudo de proporção feito por Leonardo da Vinci para ilustrar uma cópia do tratado De Architectura, escrito por Vitrúvio em 40 a.C. Na imagem acima, temos um homem esboçado em movimento, a partir do desdobramento das pernas e braços em duplicidade, em que a extensão das pernas até a cabeça delimita o tamanho do quadrado (um símbolo do mundo material e terrestre), enquanto a movimentação dos braços traça um círculo (símbolo do órbita celeste, do universo), podendo assim chegar a materialização de que o “homem é a perfeita medida de todas as coisas”.

O exemplo do “homem de Vitrúvio”, nome pelo qual ficou conhecido o desenho realizado por Leonardo, não só representa uma releitura da cultura greco-romana, mas também a apresentação de um novo olhar, mais centrado na experimentação, observação, análise e teorização do universo, não como algo estático e imutável, oriundo do poder divino, mas de uma sensibilidade que se tornou a base do pensamento científico ao longo dos séculos.

Analisemos agora a pintura de Leonardo da Vinci (1452-1519) A última ceia, encomendada pelo duque de Milão, Ludovico Sforza, e pintada na parede do refeitório do convento dos dominicanos de Santa Maria delle Grazie em Milão, entre 1495 e 1497.




A obra de Leonardo, assim como sua pessoa, foi objeto de inúmeras especulações desde a sua própria época aos nossos dias e ainda hoje preserva o encantamento, seja pela excelência de seu trabalho, seja pela diversidade de obras artísticas e de engenharia, fazendo de Leonardo da Vinci, o símbolo do conceito de homem universal (l’uomo universale), signo das múltiplas potencialidades nos diferentes campos do conhecimento.

O tema desta obra é o momento da última ceia de Cristo e seus apóstolos, cuja importância é vital no culto cristão, uma vez que nela se manifesta o dogma da transubstanciação (o pão se transforma em carne e vinho em sangue) e ao longo dos últimos dois mil anos se tornou o momento mais importante da liturgia cristã: a Eucaristia.


Como cena presente no imaginário cristão, seja pelo texto bíblico, seja pela sua constante repetição na liturgia ao longo da trajetória do cristianismo, a pintura de Leonardo traz uma série de elementos de representação, compondo a imagem como uma peça teatral: num grande e suntuoso salão, Cristo e seus apóstolos estão reunidos.



Jesus ocupa o centro da grande mesa, típica de banquetes medievais, tendo a cada um dos lados dois grupos de três apóstolos, logo, uma composição harmoniosa e equilibrada. O ponto central da imagem se encontra atrás da cabeça do próprio Cristo, que junto com a moldura da janela imediatamente posterior compõem uma circunferência, polo irradiador das linhas de perspectiva da composição, uma das principais contribuições do Renascimento.

A atenção de Cristo está voltada para o pão e o vinho, alimentos e metáforas de seu futuro destino, o sacrifício na cruz pela Humanidade. A posição de seus braços em relação à sua cabeça forma uma imagem triangular. Hipóteses para tal composição são inúmeras, destacando-se entre elas, as de caráter esotérico e místico, uma vez que os estudos herméticos e de alquimia foram muito comuns à época de Leonardo.

Não há como saber quais foram as referências que guiaram a mão e a cabeça do pintor. Mesmo as referências presentes nos Evangelhos não oferecem muitos dados para uma resposta precisa. Nesse sentido, chegamos a um ponto importante do entendimento sobre qualquer produção artística: as imagens não têm sentido sozinhas, existe um contexto e a recuperação desse contexto implica na compreensão ou na “atribuição” de um sentido mais preciso ou pelo menos mais plausível a respeito de seus possíveis significados.

Obras em destaque:


Masaccio: "A Trindade", afresco, c. 1428 - Igreja de Santa Maria Novella, Florença, Itália.

Fra Angelico: "A Anunciação", têmpera, c.1426 - Museo del Prado, Madrid, Espanha.


Filippo Lippi: "Madonna com o Menino Jesus e anjos", óleo sobre madeira, c. 1465 - Galleria degli Ufizzi, Florença, Itália.



Piero della Francesca: "A Madonna, o Menino Jesus e os santos", têmpera, c. 1472 - Pinacoteca Brera, Milão, Itália.

Filippo Brunelleschi: cúpula da catedral de Florença (1420-1436).

Sandro Botticelli: "A Primavera", óleo sobre madeira, c.1482 - Galleria degli Ufizzi, Florença, Itália.

Leonardo da Vinci: "A virgem dos Rochedos", óleo sobre madeira, c.1483-1486 - Museu do Louvre, Paris, França.

Leonardo da Vinci: "Monalisa", óleo sobre madeira, c.1503-1505 - Museu do Louvre, Paris, França.

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