As Ricas Horas do Duque de Berry

As Ricas Horas do Duque de Berry
As Ricas Horas do Duque de Berry. Produção dos irmãos Limbourg - séc. XV. Mês de julho

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

15 de Agosto - a Festa da Assunção de Maria na Catedral de Notre-Dame de Chartres


Sabemos da existência de importantes cultos dedicados às deusas dentro do Império romano, como por exemplo, as deusas Vênus, Ártemis, Demeter, Ísis e outras em diferentes locais e que de certa forma, foram aos poucos mesclados e assimilados pelo cristianismo, não de uma forma unilateral, aculturada, mas como uma referência básica que colocou lado a lado, as velhas crenças dos diferentes povos (paganus) e o crescente cristianismo que se organizou nos primeiros séculos do primeiro milênio.
Nesse contexto, as festas cristãs foram também adaptadas de acordo com o calendário cristão, servindo como referência para a conversão e organização da religiosidade de diferentes partes do império.
O culto mariano se formalizou com o Concílio de Éfeso em 431 a partir da instituição do dogma da maternidade divina: a Theotókos, cujo significado literal seria “Geradora de Deus”. Em 451 durante o Concílio de Calcedônia ocorreu não só a ratificação das decisões de Éfeso, mas também o combate ao monofisismo, considerado naquele contexto uma heresia.
Theotókos, c. Séc. IX - Monte Athos, Grécia
Fonte: Portal Ecclesia

O primeiro a ser tratado é o conceito de devoção, palavra de origem latina (devovere) que significa entregar-se incondicionalmente, consagrar a vida a algo e no caso de nosso trabalho, tratamos da devoção à Virgem Maria, institucionalização perpassa o início da era cristã e se consolida ao longo do medievo e atinge os tempos atuais, podendo ser compreendida como um fenômeno de longa duração.
Qual seria o status conferido a Maria na organização da doutrina cristã?  
De acordo com a interpretação da ortodoxia, toda a devoção à Maria está relacionada com o Cristo, não havendo possibilidade de uma posição independente, mas tal circunstância esbarra no confuso espaço entre a teologia estabelecida pela Igreja e o entendimento da mesma pelos fiéis. Para a ortodoxia, somente a Deus se deve destinar a “adoração” (latreia) e que à Virgem e aos santos estava destinada a “veneração” (proskynesis). No entanto, esta terminologia percorreu um vasto e complexo percurso dentro da história do cristianismo, pois sua significação foi responsável pelos movimentos iconoclastas da cristandade oriental e concomitantemente, ao distanciamento entre os cristãos orientais e católicos romanos e posteriormente, dos protestantes.
Resultado de diferentes formas de exegese, a relação dos cristãos com as imagens foi bem diversa, havendo também uma outra variante a ser pensada: o movimento de estabilização e ascensão do Cristianismo foi contemporâneo à decadência e desestabilização do Império Romano Ocidental nos séculos IV e V.
Dessa maneira, podemos observar, a partir deste momento, uma série de influências entre ambas as culturas (cristã e romana), uma vez que a primeira ascende e a segunda declina em algumas partes do Império Ocidental, porém não desaparece, fundindo-se, amalgamando-se e cristianizando-se gradativamente.
Dentro do mundo romano, a imagem (imago) detinha uma ampla presença e aceitação, referenciada pelo conceito da mimesis e assim, participava do cotidiano de todos nas mais diferenciadas circunstâncias: a estátua do imperador, as imagens dos deuses, os retratos ou estátuas dos antepassados, enfim, aos olhos cristãos um pecado imperdoável, mas que no mundo romano não encontrava censura.
Herança judaica, somada aos temores de uma cultura idólatra como foi a romana, todo e qualquer elemento que pudesse ser uma ameaça aos ensinamentos de Jesus eram motivo para desconfianças e críticas, mesmo se tratando por exemplo da Mãe de Jesus ou mais gravemente ainda, de  outros personagens do cristianismo.
Estrutura do vitral da Glorificação da Virgem
Fonte: Corpus Vitrearum France

O vitral dedicado à Glorificação da Virgem apresenta o reinado conjunto de Maria e de Jesus e foi construído num jogo de oposição entre o plano terrestre (representado no interior dos círculos) e o plano celeste (representados nos quadrilóbulos) que se alternam no sentido ascendente e culminam com a coroação da Virgem.
Parte inferior do vitral da Glorificação da Virgem (cenas 1 a 14)
Crédito: Elias Feitosa

Este vitral foi uma doação dos sapateiros (cenas 1 a 5) que são representados no exercício de seu ofício: a compra do couro, o corte , a costura do sapato e por fim, a venda.
A temática deste vitral tem suas raízes na tradição cristã oriental (bizantinos, sírios, armênios e caldeus), sendo uma festa que honra a Mãe de Deus que concluiu sua peregrinação terrena e sua alma é recebida por Jesus, sendo denominada como Dormição da Virgem, numa alusão ao corpo que jaz no leito e é pranteado por duas mulheres (cenas 6 e 8) e pelos apóstolos, reunidos miraculosamente pelos anjos e assim poderiam assistir a Virgem em seus momentos finais (cena 07).
Parte superior do vitral da Glorificação da Virgem (cenas 15 a 27)
Crédito: Elias Feitosa

A comoção se faz presente pela postura e gestos dos apóstolos: lágrimas enxugadas com uma parte das vestes, um olhar desviado, uma cabeça presa pelas mãos ou um semblante tenso, marcado pelas sobrancelhas enrugadas. 
Um outro aspecto é a composição da cena, a qual apresenta uma estrutura piramidal marcada pelo corpo da Virgem estendido no leito e os apóstolos que a cercam compondo os outros dois vértices.
A cena deste primeiro círculo é contraposta ao primeiro quadrilóbulo, no qual Cristo recebe a alma de sua mãe, apresentada como um pequeno corpo nu (cena 10), momento este denominado como elevação da alma.
Na sequência, temos um outro círculo que retrata a condução do ataúde pelos apóstolos (cenas 12 a 17) com o corpo da Virgem para o sepultamento, cerimônia interpretada durante o medievo como uma ação simbólica do transporte da Arca da Aliança para Jerusalém. Este episódio nos permite apontar a idéia da incorruptibilidade do corpo da Virgem e tal fato acaba por se confirmar com sua deposição no sepulcro (cenas 18 a 20) e a consequente retirada pelos anjos (cenas 21 a 23).
A distinção entre as duas assunções (do corpo e da alma) foi fruto de um vasto debate teológico com diferentes interpretações no contexto da execução deste vitral, havendo portanto, o interesse de distinguir claramente a Elevação da alma num primeiro momento e a Assunção do corpo, representado dentro de uma mandorla, envolto num manto de glória pelas mãos dos anjos, correspondendo às representações iconográficas da Ascensão de Cristo.
No topo da baia a conclusão da narrativa com a Coroação da Virgem, a qual divide o mesmo trono com Cristo e deste recebe o triunfo: sentada à direita, tendo numa mão o cetro e a outra em saudação voltada para Jesus, de quem recebe a coroa, a qual é sobrevoada por uma pomba e dela emana uma luz vermelha como uma referência direta ao Espírito Santo.

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